quarta-feira, 20 de março de 2013

Papa Argentino, Judas Argentino

Caríssimos(as),

 

Em tempos de Páscoa e com um Papa argentino no comando da Igreja Católica, vamos a um texto em que falo um pouco sobre um outro argentino: o Judas.

 
Por Márcio Kill


Um JUDAS bem malhado
 

“Quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração? e quem irá dizer que não existe razão?...” Os anos já se transformaram em décadas desde que essas palavras de Renato Russo começaram a encantar toda uma geração. E por alguma razão, foram elas que me vieram à mente enquanto praticava um de meus passatempos prediletos: namorar a seção de vinhos dos supermercados e lojas especializadas. Mesmo que não venha a comprar nenhuma garrafinha, (coisa que raramente acontece, felizmente) divirto-me ao passear entre elas, observar rótulos, pesquisar preços, colher informações, ou simplesmente divagar no imaginário fantástico dessa grandiosa bebida.
E foi durante um desses passeios que me deparei com uma garrafa emblemática, cujo título se destacava dentre as outras. Com letras artisticamente arranjadas na vertical compondo a palavra “Judas”, um nome amaldiçoado por alguns e por mim desde sempre associado ao mais enigmático dos apóstolos. Assim que a vi, a suntuosa garrafa negra chamou minha atenção e logo em seguida foi o preço que me pregou um susto. Com esse valor deve dar para comprar mais de trinta moedas de prata, pensei... 

Dessa vez, eu não trouxe o “Judas” para casa. O que não me impediu de procurar saber um pouco mais sobre ele. Pelo que apurei, nas palavras de Sebastían Olalla, diretor comercial da Bodega Sottano, produtora do vinho, o nome tão particular é resultado de um episódio envolvendo os irmãos Diego, Pablo e Maurício e o pai Dom Ricardo Sottano.
Quando eles começaram com o projeto já sabiam que este vinho teria uma quantidade muito reduzida para se oferecer em nível comercial. Então, eles decidiram que iam ficar com essas garrafas só para consumo privado da família. Mas um dia, um dos irmãos começou a tirar algumas garrafas e oferecer aos amigos em Mendoza. Os amigos começaram a comprar o vinho, então desse irmão, o Maurício.

Apesar de ser uma historinha até interessante, ouso inferir que há mais por trás dela do que salta aos olhos... Por trás de todo novo conceito, e principalmente, por trás dos grandes produtos, há sempre um bom marketing. Tomemos, por exemplo, o caso do “Casillero del Diablo”, um velho conhecido nosso e cujo preço é bem mais amigável, ao qual o marketing teria servido primeiramente para espantar ladrões de adega e como efeito colateral serviu, depois, para atrair fama quase mundial. O “batismo” do nosso “Judas” nos colocaria diante de uma questão ética: Se um irmão trai a confiança da família e esta, por sua vez, se vale de tal traição para dar nome ao seu produto Premium, quem é o verdadeiro Judas da história? E se, de forma inversa, a ganância por um lucro fácil ou qualquer outra razão menos nobre leva alguém à quebra de um pacto familiar, tal perfídia provavelmente não seria alardeada em um rótulo tão pujante do produto top de linha de uma vinícola.
O que deve ter se passado então nos bastidores da Bodega Sottano? Por que esses Judas (o irmão e o vinho) não acabaram “com a corda no pescoço”? Talvez porque uma das principais características de um vinho, e infelizmente, uma frequentemente negligenciada, é o poder agregador que ele tem em torno de si. Claro que é perfeitamente possível apreciar um bom Malbec argentino, ou qualquer outro vinho, sozinho. O mercado e o pessoal de marketing – sempre o marketing – inclusive já facilitam isso ao conceber garrafas menores. Mas eu não tenho dúvidas que dividir umas taças e um bom papo com amigos ou com a pessoa que se ama irá transformar qualquer bom vinho em inesquecível. Experimente!

Enquanto isso na Bodega Sottano o caso parece ter passado longe de uma traição, conforme nos confirma Sebastían Olalla na continuação de seu relato:
Quando os outros membros da família viram que a quantidade reduzia muito rápido, perguntaram o que estava acontecendo e Maurício falou que começou a vender as garrafas porque todo mundo falava maravilhas da qualidade deste vinho. Fazendo uma piada e brincando sobre isso começaram a chamar Maurício como o Judas, o traidor da família.
Como se pode ver, entre pseudo traidores e traídos, todos saem ganhando. E o já rico universo do vinho ganha mais um ícone e mais uma história boa de ser contada. E por falar em trinta moedas de prata, valor que o apostolo supostamente traidor teria recebido para denunciar seu mestre, de acordo com as sagradas escrituras cristãs, somente agora me dei conta que “nosso” Judas não poderia ter outra origem que não a terra de nuestros hermanos. Não que eu julgue qualquer argentino um traidor – longe disso! É que Argentina vem de argentum, prata em latim. Ou seja, um bem malhado Judas Malbec argentino todo seu por umas trinta moedinhas de prata, ou algo que o valha!

Acho que os versos da canção “Eduardo e Monica” que iniciaram este texto não poderiam ser mais apropriados para descrever a minha falta de razão ao ter como hobby o passeio por entre adegas do comércio local. Já foi pior: quando morei na Alemanha, adorava andar pelos belíssimos cemitérios dos bairros de Hamburgo. O que dizer, então, da irracionalidade que é escrever sobre um vinho que nem cheguei a provar? Acontece que para mim o vinho é coisa do coração e, segundo o poeta, sobre essas não há mesmo razão...
Finalizar aqui estas linhas sobre o “Judas Malbec” mesmo sem ter tido o prazer de degustá-lo, me traz, além da curiosidade, quase uma sensação de nostalgia e isso me lembra outra obra prima do Legião Urbana, na qual o mesmo Renato Russo canta: “insistir nessa saudade que eu sinto de tudo que ainda não vi”...

Saudações enológicas!

2 comentários:

  1. Caro enólogo do ES, adorei ler suas palavras (e vamos ver se agora consigo publicar este comentário), fiquei imaginando a mim mesma, percorrendo rótulos e supermercados ou lojas de vinho... tenho me permitido pouco, talvez as trinta moedas para escolher a minha garrafa... mas confesso que a curiosidade é tanta que estou perdidamente tentada em ir atrás desse Judas...continue escrevendo, assim poderei escolher melhor...
    Cilene De Santis

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  2. Pois é,
    Infelizmente, o preço do Judas é meio "traiçoeiro" (pelo menos, para meu orçamento atual). Mas certamente, há muito vinho bom por ai com preços mais convidativos. O Mirador, por exemplo, (da Batalha dos Tempranillos) custa uns 10% do preço do Judas e foi um "achado"!
    Abraços e um bom final de noite do Malbec Day!

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