Caríssimos(as),
Em tempos de Páscoa e com um Papa argentino no comando da Igreja Católica, vamos a um texto em que falo um pouco sobre um outro argentino: o Judas.
Por Márcio Kill
Um
JUDAS bem malhado
“Quem um dia irá dizer que existe razão
nas coisas feitas pelo coração? e quem irá dizer que não existe razão?...” Os
anos já se transformaram em décadas desde que essas palavras de Renato Russo
começaram a encantar toda uma geração. E por alguma razão, foram elas que me
vieram à mente enquanto praticava um de meus passatempos prediletos: namorar a
seção de vinhos dos supermercados e lojas especializadas. Mesmo que não venha a
comprar nenhuma garrafinha, (coisa que raramente acontece, felizmente)
divirto-me ao passear entre elas, observar rótulos, pesquisar preços, colher
informações, ou simplesmente divagar no imaginário fantástico dessa grandiosa
bebida.
E foi durante um desses
passeios que me deparei com uma garrafa emblemática, cujo título se destacava
dentre as outras. Com letras artisticamente arranjadas na vertical compondo a
palavra “Judas”, um nome amaldiçoado por alguns e por mim desde sempre
associado ao mais enigmático dos apóstolos. Assim que a vi, a suntuosa garrafa
negra chamou minha atenção e logo em seguida foi o preço que me pregou um
susto. Com esse valor deve dar para comprar mais de trinta moedas de prata,
pensei...
Dessa vez, eu não trouxe o
“Judas” para casa. O que não me impediu de procurar saber um pouco mais sobre
ele. Pelo que apurei, nas palavras de Sebastían Olalla, diretor comercial da Bodega Sottano, produtora do vinho, o
nome tão particular é resultado de um episódio envolvendo os irmãos Diego,
Pablo e Maurício e o pai Dom Ricardo Sottano.
Quando eles começaram
com o projeto já sabiam que este vinho teria uma quantidade muito reduzida para
se oferecer em nível comercial. Então, eles decidiram que iam ficar com essas
garrafas só para consumo privado da família. Mas um dia, um dos irmãos começou
a tirar algumas garrafas e oferecer aos amigos em Mendoza. Os amigos começaram
a comprar o vinho, então desse irmão, o Maurício.
Apesar de ser uma historinha
até interessante, ouso inferir que há mais por trás dela do que salta aos
olhos... Por trás de todo novo conceito, e principalmente, por trás dos grandes
produtos, há sempre um bom marketing. Tomemos, por exemplo, o caso do “Casillero del Diablo”, um velho
conhecido nosso e cujo preço é bem mais amigável, ao qual o marketing teria
servido primeiramente para espantar ladrões de adega e como efeito colateral
serviu, depois, para atrair fama quase mundial. O “batismo” do nosso “Judas”
nos colocaria diante de uma questão ética: Se um irmão trai a confiança da
família e esta, por sua vez, se vale de tal traição para dar nome ao seu
produto Premium, quem é o verdadeiro
Judas da história? E se, de forma inversa, a ganância por um lucro fácil ou
qualquer outra razão menos nobre leva alguém à quebra de um pacto familiar, tal
perfídia provavelmente não seria alardeada em um rótulo tão pujante do produto top de linha de uma vinícola.
O que deve ter se passado
então nos bastidores da Bodega Sottano?
Por que esses Judas (o irmão e o vinho) não acabaram “com a corda no pescoço”?
Talvez porque uma das principais características de um vinho, e infelizmente,
uma frequentemente negligenciada, é o poder agregador que ele tem em torno de
si. Claro que é perfeitamente possível apreciar um bom Malbec argentino, ou
qualquer outro vinho, sozinho. O mercado e o pessoal de marketing – sempre o
marketing – inclusive já facilitam isso ao conceber garrafas menores. Mas eu
não tenho dúvidas que dividir umas taças e um bom papo com amigos ou com a
pessoa que se ama irá transformar qualquer bom vinho em inesquecível.
Experimente!
Enquanto isso na Bodega Sottano o caso parece ter passado
longe de uma traição, conforme nos confirma Sebastían Olalla na continuação de
seu relato:
Quando
os outros membros da família viram que a quantidade reduzia muito rápido, perguntaram
o que estava acontecendo e Maurício falou que começou a vender as garrafas
porque todo mundo falava maravilhas da qualidade deste vinho. Fazendo uma piada
e brincando sobre isso começaram a chamar Maurício como o Judas, o traidor da
família.
Como se pode ver, entre
pseudo traidores e traídos, todos saem ganhando. E o já rico universo do vinho
ganha mais um ícone e mais uma história boa de ser contada. E por falar em
trinta moedas de prata, valor que o apostolo supostamente traidor teria
recebido para denunciar seu mestre, de acordo com as sagradas escrituras
cristãs, somente agora me dei conta que “nosso” Judas não poderia ter outra
origem que não a terra de nuestros
hermanos. Não que eu julgue qualquer argentino um traidor – longe disso! É
que Argentina vem de argentum, prata
em latim. Ou seja, um bem malhado Judas Malbec argentino todo seu por umas
trinta moedinhas de prata, ou algo que o valha!
Acho que os versos da canção
“Eduardo e Monica” que iniciaram este texto não poderiam ser mais apropriados
para descrever a minha falta de razão ao ter como hobby o passeio por entre
adegas do comércio local. Já foi pior: quando morei na Alemanha, adorava andar
pelos belíssimos cemitérios dos bairros de Hamburgo. O que dizer, então, da
irracionalidade que é escrever sobre um vinho que nem cheguei a provar? Acontece
que para mim o vinho é coisa do coração e, segundo o poeta, sobre essas não há
mesmo razão...
Finalizar aqui estas linhas
sobre o “Judas Malbec” mesmo sem ter tido o prazer de degustá-lo, me traz, além
da curiosidade, quase uma sensação de nostalgia e isso me lembra outra obra
prima do Legião Urbana, na qual o mesmo Renato Russo canta: “insistir nessa saudade que eu sinto de tudo
que ainda não vi”...
Saudações enológicas!
Caro enólogo do ES, adorei ler suas palavras (e vamos ver se agora consigo publicar este comentário), fiquei imaginando a mim mesma, percorrendo rótulos e supermercados ou lojas de vinho... tenho me permitido pouco, talvez as trinta moedas para escolher a minha garrafa... mas confesso que a curiosidade é tanta que estou perdidamente tentada em ir atrás desse Judas...continue escrevendo, assim poderei escolher melhor...
ResponderExcluirCilene De Santis
Pois é,
ResponderExcluirInfelizmente, o preço do Judas é meio "traiçoeiro" (pelo menos, para meu orçamento atual). Mas certamente, há muito vinho bom por ai com preços mais convidativos. O Mirador, por exemplo, (da Batalha dos Tempranillos) custa uns 10% do preço do Judas e foi um "achado"!
Abraços e um bom final de noite do Malbec Day!